Verdades e Mentiras sobre os Descontos em Farmácias

Se há um tema que tira o sono de qualquer proprietário de farmácias no Brasil são aquelas placas de alguns concorrentes anunciando números como 20%, 40%, 50%, 60% de desconto. Se por um lado esses números provocam excitação junto ao consumidor, por outro instala um profundo desânimo na grande maioria dos proprietários — que traz insegurança e dúvidas sobre a continuidade do próprio negócio. Sobre esse assunto, Gilson Coelho foi entrevistado pela revista ABCFarma e trouxe informações surpreendentes. Confira:

Por que a prática dos descontos ao público consumidor tornou-se quase uma obrigatoriedade no cotidiano das farmácias?
Somente na categoria dos medicamen­tos. É que por força da atual legislação, os medicamentos têm o que chamamos de PMC – Preço Máximo ao Consumidor e o PF – o Preço-fábrica. É o único setor da economia brasileira ainda controlado pelo governo. Para o consumidor levar alguma vantagem, o varejo concede descontos to­mando o PMC como base. Se o varejista pretende obter vantagens junto a distribuidores/fabricantes, terá que conseguir des­contos destes tomando como base o PF – Preço Fábrica. A diferença entre PMC e PF é a Margem Bruta das farmácias na catego­ria de medicamentos. A farmácia necessi­ta desta margem para cobrir as despesas. Quando consegue esta façanha, alcança um saldo que denominamos de Resultado Líquido. É a tal rentabilidade que nós tanto defendemos. No caso da perfumaria, por exemplo, essa categoria não tem seus pre­ços controlados, ficando a cargo do merca­do estabelecer os preços e arcar com a sim­patia ou não dos consumidores.

Por que o desconto concedido aos clientes tornou-se um diferencial tão expressivo no varejo Farma brasileiro?
Vamos tomar como base alguns atri­butos que são importantes na relação entre o varejo farmacêutico e os clientes: atenção especial, orientação, atendimen­to humanizado e o desconto concedido. Em uma escala que vai de zero a dez no seu grau de importância, vamos imagi­nar um esforço especial de atendimen­to onde todos os atributos alcançassem uma nota oito. Nestas circunstâncias, o desconto concedido não seria tão rele­vante. É preciso reconhecer que a prática de um atendimento técnico sofrível acaba contribuindo para colocar o desconto em uma posição de destaque ainda maior. Estamos falando de medicamentos, mas infelizmente, quando falta um atendi­mento humanizado que se destaque, não me sai da cabeça a ideia de commodity. Quando se trata de commodities, não existem outros atributos que possam influenciar a relação de valor – só preço conta. No caso de uma melhora expres­siva no nosso modelo de atendimento, o preço, mesmo que relevante, não seria tão destacado como se percebe no mer­cado atualmente.

Em uma atividade em que as margens são tão apertadas e controladas, não é um paradoxo a prática de grandes descontos?
Concordo plenamente. É realmente um paradoxo. Os descontos concedidos afetam as margens e a farmácia necessita desta margem para cobrir as despesas e ainda obter a tão sonhada rentabilidade líquida. Por diversas vezes mencionamos a impor­tância da rentabilidade nesta revista. Entre todos os indicadores, a rentabilida­de é aquele que simboliza o Placar do Jogo. Precisamos destacar que 0 desconto concedido afeta a mar­gem, mas também proporciona um maior fluxo de clientes para as lojas. Muitas farmácias que anunciam descontos significativos acabaram descobrindo um jeito de conseguir o máximo de fluxo de clientes, com um mínimo de desconto concedido realmente praticado na loja.

O que você acha das placas com dizeres do tipo “descontos de 20%, 30%, 40%, 50%, 60%”?
Primeiro, as farmácias precisam ter muito cuidado ao incorporar esses anúncios só para não ficar atrás da con­corrência. Na grande maioria dos casos, existe uma armadilha muito perigosa que pode levar o empresário desatento a uma espécie de “suicídio mercadológico”. Ele fica inclinado a também conceder descontos para não perder faturamen- to, mas termina por obter uma margem bruta muito baixa, incapaz de cobrir as despesas da sua loja. Se ele não tiver o hábito de constantemente olhar o Placar do Jogo (verificar mensalmente se a loja é rentável), quando perceber já estará em estágio elevado de inadimplência e o caso pode se tornar irreversível. E a armadi­lha consiste em que, geralmente, ao lado do desconto máximo, o de 60%, há um artifício quase imperceptível, que é o asterisco (*) ou a palavra até.

Qual é apegadinha destes artifícios?
A empresa que anuncia “60% de des­conto” acaba usufruindo dos benefícios do tráfego provocado pela atratividade do número 60, mas 0 desconto concedido realmente aplicado não passa de 6, 8 ou quem sabe uns 10% na média. Segundo a prática que se verifica no mercado, o nú­mero exorbitante é o grande protagonista da ferramenta de marketing, carregando fluxo pesado de clientes para a loja. Quem percebe a presença do asterisco ou da pa­lavra até? É evidente que em algum lugar existe uma explicação para o significado do asterisco e eu costumo usar o humor para fazer esta descrição: somente em produtos tarjados, para aposentados aci­ma de 80 anos acompanhados dos pais, portadores do cartão Fidelidade Gold. Se o artifício utilizado pela empresa for o até, esta escolhe alguns poucos itens (ge­ralmente de baixo giro) com 60%, outros com 50%, e assim por diante, mas nada que signifique fortes concess es de des­contos ao grande volume das vendas.

A empresa que utiliza esses artifícios está fazendo alguma coisa errada?
Aparentemente, não. Quando ne­cessário, ela explica o significado do asterisco ou então mostra alguns itens justificando que existem, sim, produtos com até 60% de desconto. Imagino que se a empresa for interpelada pelo PROCON, por exemplo, não existe nenhuma dificuldade em explicar o significado do anúncio. Na prática, o pessoal de balcão acaba concedendo mesmo o desconto somente em casos especiais, se o cliente exigir muito, mas o desconto concedido médio é realmente bem mais baixo que o anunciado.

Este é um daqueles exemplos em que a versão é mais importante, impactante, do que o fato em si?
É exatamente isso! Ignorando o fato de que desconto é realmente muito mais baixo, as pessoas agem de acordo com aquilo que parece ser. Os clientes são estimulados pelo anúncio e muitos pro­prietários de farmácias enlouquecem com um número destes na cabeça, cain­do na armadilha e praticando descontos que não poderiam praticar ou se deses­perando psicologicamente por se sen­tirem incapazes de acompanhar aquilo que imaginam ser a realidade do merca­do. Estamos diante de um exemplo que até poderia ser confundido com propa­ganda subliminar, onde a mensagem não é captada completamente pelos sentidos humanos. A sua compreensão não é ime­diata. A percepção humana é incapaz de decifrar de imediato a verdade sobre os artifícios que explicamos aqui. Uma vez comprometida a verdadeira percepção daquilo que está sendo observado, isto é, a placa de 60% com o asterisco, a aparên­cia absolutamente conveniente termina por exercer forte persuasão e desloca­mento dos clientes para o estabelecimen­to que faz o anúncio.

Nesse caso a loja é mestre em dar descontos ou mestre em posicionamento de marketing?
O tema do posicionamento tem a ver com o modo como a loja deseja ser perce­bida pelos clientes. Muitas empresas são especialistas neste quesito, trabalham sistematicamente para impor um de­terminado rótulo à cabeça dos clientes, conscientes de que, ao final das contas, a empresa acaba sendo aquilo que pare­ce ser na cabeça do seu consumidor. Se considerarmos o poder de comunica­ção, os recursos de mídia, a capacidade de influenciar as massas de uma grande rede, por exemplo, concluiremos que o volume dos negócios pode estar sendo influenciado muito mais pela aparência do que pela essência. Em se tratando de farmácia, é realmente uma pena que isto esteja acontecendo, já que a população ganharia muito mais se estivesse diante de uma competição pela qualidade, com base no alto valor agregado percebido pe­los clientes no próprio ambiente da loja.

Você vê alguma forma de nos aproximarmos dessa competição pela qualidade?
Eu penso que sim. Este é um daque­les casos em que a legislação poderia influenciar e definitivamente corrigir os erros, acabar com as falsas expecta- tivas de anúncios equivocados, provo­car equilíbrio, instalando em definitivo uma competição sadia pela qualifica­ção no atendimento das nossas farmá­cias. Explico melhor: imagine que não seja mais permitido fazer anúncios do tipo que descrevi, onde uma multidão se desloca para a loja, mas somente uma parcela muito pequena usufrui realmente de algum benefício. Nestas circunstâncias, a farmácia teria que conquistar seus clientes com base em atendimento efetivo. Clientes realmen­te satisfeitos poderiam recomendar o estabelecimento com base no valor agregado percebido no próprio am­biente da loja. Estaríamos tratando de evidências objetivas, lidando com a realidade e não com falsas miragens, falsas expectativas. Ressalte-se o es­tado emocional de muitos clientes que procuram as farmácias, motivados por necessidades que tratam da continuida­de da vida, mexendo com os seus valo­res mais significativos. Não me parece adequado, e nem humano, que a farmá­cia se utilize muito mais da aparência do que da essência na relação com o seu público, sabidamente tão fragilizado. Eis um propósito no qual eu colo­caria toda a minha energia, tempo e inteligência: ver nas farmácias brasileiras uma revolução pelo valor agregado realmente perce­bido, com base em atendimento técnico qualificado, diferencia­do e humanizado. Precisamos de mais adeptos nesta missão. Este é o momento adequado para o pri­meiro passo de uma grande cami­nhada. Nada resiste a uma ideia cujo tempo tenha chegado!

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